Finanças

Pacote oficializa dinheiroduto do Fed para as pirâmides financeiras

Secretário do Tesouro de Bush propõe trocar organograma enquanto assevera que base da regulamentação é “a disciplina dos mercados”. No mais, vai garantir a transparência com derivativos e manterá turno de trabalho do Fed aos domingos

Enquanto o secretário do Tesouro de W. Bush, Henry Paulson, anunciava o que a mídia dos EUA – e certa mídia daqui – apresentaram como a “maior mudança” na regulamentação do sistema bancário dos EUA “desde 1930”, um professor universitário norte-americano singelamente a classificou de “uma reforma bancária feita por um banqueiro de investimentos”. Certamente se referindo à carreira de Paulson no Goldman Sachs. Já o economista norte-americano Paul Krugman

viu a questão por outro ângulo. “O princípio por trás da nova proposta do governo Bush é essencialmente sobre criar uma aparência de resposta à atual crise, sem verdadeiramente fazer nada de substantivo”. Ou, como comparou, trata-se da “estratégia do organograma”, no estilo da história em quadrinhos “Dilbert”, muito popular nos EUA. Em que executivos, para esconder sua falta de idéias, armam um show para “rearranjar os boxes e as linhas que dizem quem se reporta a quem”. “OCC, OTS e CFTC são ‘out’; PFRA e CBRA são ‘in’”, ironizou.

PERDAS BANCÁRIAS

Note-se que, nos últimos meses, os maiores bancos dos EUA sofreram perdas gigantescas, como o Citibank e o Bank of América. O Federal Reserve, nas contas do Merrill Lynch, o maior banco de investimentos dos EUA, já torrou US$ 1 trilhão em vários tipos de socorro aos bancos. Quase todos os maiores “bancos de investimento” – os que operam com títulos, hipotecas, ações e derivativos – estiveram à beira da bancarrota, e o quinto maior, o Bear Stearn, faliu.

Grandes corretoras de hipotecas quebraram, e as duas maiores seguradoras no setor dos municípios por muito pouco não fecharam. Cada fechamento de balanço trimestral é uma hemorragia, e o Fed passou a funcionar até nos domingos. A revista inglesa “The Economist” chegou a comparar com um “inverno nuclear financeiro” o que sucederia se não houvesse ocorrido o resgate do Bear com os US$ 30 bilhões do Fed em troca de hipotecas podres.

“The Economist” deu um quadro da orgia especulativa que tomou conta dos EUA sob W. Bush. E – acrescentamos – que se tornou possível pela abolição, um atrás o outro, dos mecanismos de regulação do sistema financeiro estabelecidos pelo presidente Roosevelt. Assim, a parcela do setor financeiro no total de lucros corporativos “subiu de 10% na década de 1980, para 40% no seu pico no ano passado”. O retorno anual de um típico portfólio de ações, títulos e dinheiro ultrapassava 14% – “quase quatro vezes o normal das décadas passadas”; o número de fundos mútuos “mais que quadruplicou”. Já “o valor dos ativos mantidos nos fundos de hedge quintuplicou” desde 2000. “Em 1980 a dívida do setor financeiro era apenas um décimo do tamanho do débito do setor não-financeiro. Agora é a metade”. Uma especulação jamais vista: a Goldman Sachs está usando “cerca de US$ 40 bilhões de patrimônio como fundamento para ativos de US$ 1,1 trilhão”. Na Merrill Lynch, “US$ 1 trilhão de ativos oscilam em volta de US$ 30 bilhões de patrimônio”. Na alta, esclarecia a revista, esse trapaça criava “lucros siderais”. Na baixa, “uma pequena queda nos valores dos ativos pode arrasar os acionistas.” Além de fazer milhes de pessoas perderem suas casas e economias.

Diante disso, as propostas de Bush/Paulson constituem um exercício de prestidigitação, em que frases ocas sobre “a manutenção da liderança dos EUA nos produtos financeiros” – objetivo inicial do projeto – se somam à salada de siglas, em que agências de controle que já existem são juntadas numa só, ou simplesmente são substituídas por novas, e análogas. Entre as mais argutas afirmações de Paulson está a que coloca como base da nova “regulamentação” a “disciplina de mercado”, tão bem exercida com os derivativos. Quanto ao “reforço do Fed”, antes mesmo do anúncio da “ampla reforma” de Bush/Paulson, no fim de semana em que o Bear foi a lona já foi possível ver no que isso vai dar. US$ 30 bilhões de dólares para o JP Morgan Chase deglutir o Bear. Agora, querem a legalização do papel de guarda-chuva das pirâmides financeiras quebradas, no sentido contrário do que foi feito por Roosevelt para reerguer o sistema financeiro dos EUA do crash de 1929. Ele tomou a providência de separar os bancos que captavam depósitos do público – que passaram a ter garantia federal – dos que operavam com títulos e ações, isto é, com a especulação.

Aliás, o Federal Reserve é um inusitado banco central, privado, propriedade dos principais banqueiros dos EUA, com cinco bancos componentes, e onde quem manda, há décadas, são os Morgans e os Rockefellers. Assim, a “ampliação da regulamentação” via Fed não passa da regulamentação do dinheiroduto para as corretoras que estão derretendo, em operações em que também os bancos estão metidos, por fora dos balanços.

Supostamente, em troca dessa “janela” para o dinheiro dos contribuintes, as diversificadas arapucas desenvolvidas ao longo das últimas duas décadas, dos fundos de hedge às linhas de montagem de derivativos, teriam de tornar mais “transparentes” suas “operações”. Como se o que fez esse “sistema-sombra bancário” – nos termos de Krugman -, inchar até a estratosfera não fosse, exatamente, o fato de se basear em todo tipo de manipulação, prevaricação, embuste e fraude para fabricar lucros e adulterar balanços. Já a transparência seria assegurada por alguma agência de classificação de riscos amiga – aliás, casualmente ligada a algum grande banco -, e disposta a considerar estrume como um título triplo-A enquanto a casa não cair.

“DIREÇÃO ERRADA”

Krugman também desmontou a alegação de Paulson de que “faltou coordenação entre as agências de regulamentação existentes” para evitar “nossos problemas correntes”. “A verdade é que não foi isso absolutamente o que ocorreu. Os vários órgãos reguladores realmente trabalharam muito bem e coordenados”, registrou o economista. “Infelizmente, eles estiveram coordenados na direção errada”, advertiu Krugman. Como na foto de 2003, em que autoridades de múltiplas agências se exibem “usando tesouras e serras para despedaçar pilhas de regulamentações bancárias, no momento em que a indústria financeira estava começando a atuar selvagemente”. Ou quando o governo Bush “ativamente bloqueou governos estaduais que tentavam proteger famílias contra os empréstimos predatórios”.

ANTONIO PIMENTA