Finanças

As nossas regras são melhores… Nem tanto

Uma certa mentalidade insular tem propagado um mantra nos últimos meses. As regras financeiras e bancárias no Brasil são melhores do que as existentes nos outros países. Sobretudo, melhores do que as em vigor nos EUA.

 Pode ser. Mas tenho dúvidas, embora não milite no jornalismo econômico há algum tempo. No Brasil, de fato, os bancos são obrigados a terem reservas mais altas para cobrir suas operações de crédito. Nos EUA, bancos estavam alavancados dezenas de vezes (para cada dólar em caixa emprestavam 30 ou 35 dólares na praça; uma loucura). Tudo verdade. Mas vale ressaltar dois aspectos. 1) capitalismo diferente: os bancos no Brasil sobrevivem numa categoria diferente de livre mercado. É algo que poderia muito bem ser classificado de “capitalismo sem risco”. Os juros mais altos do mundo, há décadas, tornaram a atividade financeira uma moleza se comparada à de países onde há uma única forma de capitalismo, o capitalismo real, com risco. Por estas plagas, dois amigos têm dinheiro sobrando, abrem um banco, compram títulos do Tesouro brasileiro e certamente terão lucro, sem necessidade de arrojo ou inovação.  Nos EUA, o juro pago por papéis do governo é  negativo. O título público norte-americano é uma reserva de valor. Quem compra sabe que o dinheiro estará para sempre garantido na hora do resgate. Daí o juro ser muito baixo. Para ganhar dinheiro, os banqueiros norte-americanos precisam se jogar aos leões, conquistar clientes, dar empréstimos. Enfim, precisam correr muito mais riscos do que seus colegas brasileiros. Podemos todos reclamar dos EUA, da arrogância, do belicismo. Podemos parar de tomar Coca-cola para protestar (como um ministro de FHC fez no passado). Tudo bem. Mas é inegável que esse modelo de alta competição deu ao país acima do Rio Grande uma vitalidade nunca vista aqui perto do Trópico de Capricórnio. O risco, inerente ao capitalismo verdadeiro, compele as pessoas à inovação. Quantas Microsofts e Apples surgiram no Brasil com todas as regras mais avançadas que supostamente existem por aqui? No Brasil, título público é um dos melhores investimentos possíveis. Uma geração de brasileiros rentistas sonhou e sonha em ter dinheiro para colocar no banco e viver de renda. Essa é uma anomalia incompatível com capitalismo. Mas perfeitamente em linha com o “capitalismo sem risco” à brasileira. Os sucessivos governos, desde o final da ditadura militar, nada fizeram para acabar com essa mentalidade deformada que comanda os nossos empresários –e muitos integrantes da classe média resmungona. 2) proteção ao consumidor: esse é outro aspecto importante a ser considerado sobre as regras daqui e dos EUA. Os correntistas norte-americanos, até recentemente, tinham até US$ 100 mil garantidos de seus depósitos bancários. Veio a crise atual e o limite subiu para US$ 250 mil. No Brasil, informa o site do Banco Central, o valor garantido em contas correntes individuais vai até R$ 60 mil. Ou seja, o sistema bancário brasileiro pode ser mais regulamentado que o norte-americano, mas o cuidado para preservar a ponta mais frágil do sistema, o correntista, é menos exigente do que o modelo norte-americano. Por fim, um pitaco a respeito dos papéis exóticos conhecidos como derivativos. São contratos que empresas, bancos, qualquer um pode fazer para garantir preços e rendas. Por exemplo, um contrato de câmbio futuro. Foi aí que várias empresas brasileiras se estreparam com a crise, pois houve uma grande desvalorização do real. Nos EUA, esse mercado é muito maior. Foi um dos responsáveis por ninguém saber ao certo o que se passava dentro de determinadas instituições até que a bolha imobiliária estourasse. Alguns por aqui logo deram risada. Começaram a se jactar sobre as “regras mais rígidas” e seguras do país tropical. Na realidade, o que se passa na verdade é que as autoridades dos EUA estão se movimentando com extrema rapidez no caso dos derivativos. O Tesouro dos EUA anunciou na sexta-feira, dia 14.nov, antes da reunião do G-20, regras nunca antes imaginadas para o setor de derivativos. Os reguladores dos EUA planejam câmaras de compensação para derivativos vendidos em balcão, uma grande novidade (aliás, impuseram esse item apara o G-20, no dia seguinte). Se der certo, a idéia trará muito mais transparência a um mercado hoje dominado pelo segredo. Antes do final do ano esse novo sistema deve estar funcionando nos EUA. Como esses norte-americanos acreditam de fato em capitalismo, arrancaram logo uma declaração da associação de representantes de emissores de derivativos apoiando a medida. A International Swaps and Derivatives Association lançou um comunicado também na sexta-feira, dia 14.nov., apoiando a decisão do Tesouro. No Brasil, há câmara de compensação para derivativos –mas não para títulos vendidos no balcão. Transparência aqui também não é o forte. O governo ficou vendido quando grandes empresas começaram a anunciar grandes perdas no mercado de derivativos futuros em meio à atual crise.  Talvez fosse o caso de perguntar que tipo de vantagem as tais regras financeiras mais rígidas do Brasil trouxeram de benefício para o país nos últimos anos. Além dos lucros astronômicos dos bancos sob FHC e sob Lula, que incentivo houve para os brasileiros em geral sonharem mais em empreender do que com deixar o dinheiro no banco aplicado no fundão para “viver de renda”. No fundo, todos aqui querem ser personagens de Aluízio Azevedo e comprar uns sobradinhos para alugar. Empreender não é a nossa praia. No fundo, essas regras mais rígidas brasileiras só funcionam quando existe o capitalismo quase sem risco que vamos legar ao mundo como contribuição nacional. Juros altos, lucros altos. A combinação permite exigir muitas garantias do sistema. Mas essas mesmas regras têm compelido a todos nós para a periferia do mundo nas últimas décadas. Acabar com regras? Nem pensar. Mas aperfeiçoá-las para que produzam riqueza geral e não apenas estabilidade econômica e riqueza para poucos. Há sinal de interesse do governo Lula nesse sentido? Pergunte ao Lula. Desde o estouro da bolha imobiliária nos EUA e do agravamento da crise, ouve-se dia sim e dia também que as regras do Brasil são as melhores. 

Tenho dúvidas, tenho dúvidas.

Por Fernando Rodrigues